domingo, 28 de abril de 2024

Filme Guerra Civil enaltece o jornalismo e alerta sobre o perigo do extremismo de direita


Estreou neste mês de abril o filme Guerra Civil, do diretor Alex Garland, uma superprodução americana estrelada pelo ator brasileiro Wagner Moura. O filme é antes de mais nada uma exaltação do papel do jornalismo, e, mais especificamente, do fotojornalismo, na defesa e manutenção da democracia e no registro de grandes guerras e conflitos. Moura é um repórter viciado em adrenalina que, ao lado de Kirsten Dunst, que é uma veterana fotógrafa de guerra, e mais dois profissionais de imprensa (Cailee Spaeny e Stephen McKinley Henderson), viaja os EUA para uma entrevista com um presidente que está prestes a ser derrubado por rebeldes numa guerra civil.

 

O filme retrata o jornalismo em sua essência, como ele deve ser – isento e imparcial –, e não como ele é na prática, com seus vieses e interesses.  “Nós gravamos para que outras pessoas possam fazer as perguntas”, diz a fotógrafa interpretada por Dunst em certo momento [1]. Ainda que essa escolha narrativa soe ingênua, ela é compreensível dentro do contexto político atual, de ataques nem sempre justos à imprensa, em parte suplantada por máquinas de desinformação que são muito piores que ela.

 

Sobre o contexto político, o filme tem recebido críticas por não se aprofundar em questões ideológicas e nas razões que levaram ao caos retratado na trama. Discordo parcialmente. Ainda que o filme propositadamente seja superficial nas questões políticas, ele está longe de ser “isentão”, como alguns críticos e espectadores apontam [2]. Fico com as palavras do diretor: “O filme oferece respostas, mas de forma sutil” [3].

 

Ainda que tente colocar uma névoa em sua posição política, como mostrando uma aliança rebelde entre Califórnia e Texas (estados tradicionalmente de alinhamentos políticos opostos: o primeiro, mais democrata; o segundo, mais republicano), a obra dá algumas pistas sobre o que propõe. Temos um presidente americano que está em seu terceiro mandato - o que é inconstitucional –, que dissolveu as instituições (o FBI, por exemplo), que em seu discurso fala em Deus, pátria e “americanos de bem”, cujos apoiadores atiram na imprensa. Na cena mais tensa e perturbadora da trama, um soldado governista ameaça a equipe de imprensa e pergunta que tipo de americanos eles são. O purismo racial e a xenofobia (principalmente contra chineses) ficam claros. Tiago Gayet, pós-graduado em Sociologia pela USP e professor de História, fala sobre esses aspectos:

 

‘Make America Great Again‘ era a máxima da campanha de Trump, assim como os meios para devolver aos EUA seu louvor: construir uma muralha anti-imigrantes. Lembra bastante o modus operandi do nazi-fascismo do entreguerras (1919-1939), de enaltecer uma construção idílica de pátria, colocá-la ‘acima de tudo’ e apontar supostos culpados indesejáveis nesse paraíso a ser construído: comunistas, judeus, populações racializadas etc. [1]

 

Do outro lado, o das Forças Ocidentais que querem depor o presidente, há soldados negros, asiáticos e mulheres. Suas bases têm pichações multicoloridas, o que possivelmente é usado como recurso narrativo para apontar para uma multidiversidade. Essas cores diversas também estão em detalhes como cabelos e unhas de alguns soldados (o que apontaria para o movimento LGBT+) [4]. Além disso, essas bases militares rebeldes são mais receptivas à equipe de imprensa (o que nem é difícil, já que o lado oposto está matando jornalistas).

 

Em entrevista, Wagner Moura disse que o filme alerta para o risco da polarização [5]. Mas isso não é tudo, pois polarização é um fenômeno antigo, seja nos EUA (entre republicanos e democratas), seja no Brasil (basta lembrar da polarização pós-redemocratização, entre PT e PSDB) [6]. Já Alex Garland disse que o filme é um alerta sobre o extremismo [3]. Também não é tudo, já que o extremismo de esquerda é muito pequeno na maior parte do mundo. Por isso proponho que o filme é um alerta sobre o extremismo de direita. Esse sim, significativo e que tem tomado algumas das principais potências econômicas. É a partir deste contexto atual que a distopia de Guerra Civil é construída. Como explica Gayet:

 

Na França, a extrema-direita cresce e ameaça ganhar eleições; na Alemanha, núcleos neonazistas também somam recorde histórico desde o fim da Segunda Guerra. Nos EUA, Trump ressurge com forças renovadas. Não existe polarização, mas sim uma verdadeira campanha de radicalização das pessoas para que encontrem um culpado entre as minorias (pessoas racializadas, LGBTQIA+, minorias religiosas, imigrantes), e elejam políticos da extrema direita. [1]

 

Sobre a polarização, para Gayet, essa suposta polarização acontece quando pessoas contrárias a esses valores extremistas resolvem fazer oposição. De certo modo, as palavras do historiador são parecidas com as do próprio diretor do filme, quando disse em entrevista que “a crise mundial hoje não é entre esquerda e direita, mas entre extremistas e o centro” [3]

 

Para além dessa discussão, vale ressaltar um aspecto técnico do filme: seu design de som é excelente, com sequências de tiros e bombas sendo intercalados com flashes de câmeras fotográficas, além de muitas hélices de helicópteros. Sem contar uma trilha sonora também bastante interessante. A sequência do confronto em Washington, lá pelo final do filme, é uma longa pancada na orelha. No bom sentido! Podem escrever: Guerra Civil certamente será indicado para alguns dos principais prêmios ligados a som.

 

Referências:

[1] “Guerra Civil”: o que o filme com Wagner Moura ensina sobre História e política

https://guiadoestudante.abril.com.br/dica-cultural/guerra-civil-o-que-o-filme-com-wagner-moura-ensina-sobre-historia-e-politica/

 

[2] Civil War (Guerra Civil) - Crítica: reverência ao fotojornalismo

https://www.youtube.com/watch?v=HfbhlG

 

[3] “O extremismo mata”, diz Alex Garland, diretor do sucesso ‘Guerra Civil’

https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/o-extremismo-mata-diz-alex-garland-diretor-do-sucesso-guerra-civil

 

[4] GUERRA CIVIL: É isso que nos aguarda?

https://www.youtube.com/watch?v=flHlSwbU21M

 

[5] Guerra Civil é um filme sobre os perigos da polarização, diz Wagner Moura

https://www.tecmundo.com.br/minha-serie/282119-guerra-civil-filme-perigos-polarizacao-diz-wagner-moura.htm

 

[6] POLARIZAÇÃO? ANTAGONISMOS POLÍTICOS NO BRASIL

https://leituraobrigahistoria.com/podcast/polarizacao-antagonismos-politicos-no-brasil/

 

 


sexta-feira, 12 de abril de 2024

“Brizola”: documentário estreia em festival e conta a história do líder trabalhista

 


Estreou no Rio de Janeiro, no último domingo, dia 7, no festival de documentários É Tudo Verdade, o filme “Brizola”, sobre a vida deste que foi uma das maiores lideranças políticas do Brasil no século 20. Ainda dentro da programação do festival, o filme foi novamente exibido na terça-feira, dia 9, também no Rio, e em São Paulo, nos dias 12 e 13 de abril. Depois disso, a previsão é de que “Brizola” seja lançado no Canal Curta!.

 

A sessão de estreia ficou lotada. As cadeiras da sala do Estação NET, em Botafogo, não foram suficientes. As cadeiras extras também não foram, e teve gente que precisou assistir ao filme no chão mesmo. Dentre os presentes, algumas lideranças do Partido Democrático Trabalhista (PDT), fundado por Brizola em 1980, como a deputada estadual Martha Rocha, presidente do PDT-Rio. Na tela, muitos nomes clássicos da legenda, que com seus depoimentos ajudam a recontar a história de Leonel Brizola, como Darcy Ribeiro, Miro Teixeira, Nilo Batista, dentre outros.

 

Ao dar as boas-vindas ao público, Amir Labaki, organizador do festival, disse que “Brizola foi uma daquelas pessoas que só não fez mais pelo Brasil porque não pôde. Se pudesse ter feito mais, nosso país seria muito melhor”. Dirigido por Marco Abujamra e produzido por Mariana Marinho (Dona Rosa Filmes), o filme emocionou do início ao fim em sua exibição de estreia, provocando diversos momentos de aplausos, levando o público às lágrimas, mas também às risadas, com algumas das tiradas espirituosas de seu protagonista, notoriamente conhecido por ter sido um líder político carismático e personalista.

 

Os realizadores contaram com o apoio do acervo reunido pelo PDT ao longo de suas quatro décadas de existência e com o trabalho de pesquisa do Centro de Memória Trabalhista (CMT), da Fundação Leonel Brizola – Alberto Pasqualini (FLB-AP). Falar sobre Brizola é também contar uma parte significativa da história do trabalhismo brasileiro. Juntamente com Getúlio Vargas e João Goulart (Jango), o fundador do PDT forma o trio emblemático dessa corrente política que, como conceitua o professor Reinaldo Lohn (HISTÓRIA FM 134, 2023), se caracteriza como um conjunto de práticas de reformismo social voltadas para a extensão e ampliação de direitos sociais, com foco nas classes trabalhadoras.

 

O trabalhismo não pressupõe uma perspectiva de superação do capitalismo, mas a convivência entre o capitalismo e o mundo dos direitos sociais. Isso vai se configurar com muita densidade em países europeus. O caso clássico é o da Inglaterra, que se estendeu para todo o Reino Unido por meio do Partido Trabalhista Britânico. No Brasil, o termo foi apropriado nos anos 30 e 40. A noção internacional de trabalhismo, no caso brasileiro, serve como uma roupagem. Aqui, nossa invenção do trabalhismo tem uma trajetória toda própria, relacionada ao getulhismo ou varguismo. O reformismo social aqui está presente, mas o encaminhamento dessas reformas é distinto, numa trajetória latino-americana (HISTÓRIA FM 134, 2023).

 

A narrativa do filme começa com o retorno de Brizola ao Brasil, em 1979, após um longo exílio de 15 anos no qual ele passou por países como Uruguai, Estados Unidos e Portugal. Naquela ocasião, Brizola retornara a solo brasileiro sendo considerado o inimigo número um da ditadura militar que o expulsara do país, permanecendo no posto de inimigo número um até o fim do regime. O filme então recapitula a trajetória do líder político alinhado ao então vigente processo de redemocratização, começando por seu nascimento e infância pobre, em Carazinho, interior do Rio Grande do Sul.

 

Sua formação – graduando-se em engenharia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – e seu ingresso na carreira política são retratados brevemente. Nessa época, em que Getúlio Vargas era a mais notória personalidade política do país, o jovem Brizola entra para o recém-criado Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que não deve ser confundido de forma alguma com o PTB mais recente, do período de redemocratização, que abrigou figuras como Roberto Jefferson e que no fim do ano passado se fundiu ao Patriotas. Mas essa história é contada mais à frente pelo filme.

 

Após se eleger deputado estadual e federal e prefeito de Porto Alegre, em 1958 o caudilho é eleito governador do Rio Grande do Sul. É nesse cargo que Brizola se notabiliza como defensor do processo democrático, ao coordenar o que ficou conhecido como “campanha da legalidade”. Com a renúncia de Jânio Quadros, o sucessor legal e direto na presidência do país era Jango. Diante da iminência de um golpe, mobilizado por setores das elites conservadoras do país desfavoráveis a Jango, Brizola, aliado ao comando do III Exército, lidera em 1961 civis e militares em uma grande mobilização para que a sucessão presidencial se desse conforme a Constituição vigente à época. Por isso o nome “campanha da legalidade”. Tratava-se de um movimento para que a lei fosse cumprida.

 

Naquele momento, o golpismo fora derrotado e Jango assume a presidência. Mas três anos depois, em 1964, os golpistas teriam sua revanche. Jango é deposto. Brizola se propõe a resistir ao golpe, mas Jango, temendo um derramamento de sangue e não vendo alternativa, se resigna com o exílio. O filme pontua bem as diferenças entre as duas grandes figuras trabalhistas daquela época: de um lado, um Jango moderado que parecia acreditar demais na conciliação e na possibilidade de governar com o apoio da direita; de outro, um Brizola mais inflamado, mais à esquerda e disposto ao risco de uma possível luta armada. Golpe posto, ambos têm de sair do país.

 

O filme enfatiza, deixa claro, inclusive pelas palavras do próprio Brizola, que os golpistas de 64 eram os mesmos que tentaram o golpe em 1961, que por sua vez eram os mesmos que, anos antes, tentaram também golpear Getúlio Vargas. Essa tradição golpista fica bem caracterizada no documentário de Marco Abujamra. Em entrevista, o diretor destacou que Brizola usou seu poder de comunicação para “promover ideias consideradas extremistas e comunistas” pelos setores conservadores.  De acordo com Abujamra, “é surpreendente que, em 2024, as mesmas ideias continuem a ser consideradas extremistas por grande parte da população”, disse o diretor [1].

 

O filme parece sugerir um certo caráter cíclico da história, mostrar as continuidades, um passado que ainda se faz presente. Mesmo após o golpe, durante e depois do exílio, os ditadores não deixaram de dificultar as coisas para o velho caudilho. Em 1980, já de volta ao Brasil, Brizola tenta refundar o PTB para protagonizar à frente do histórico partido a retomada do processo democrático. Mas a ditadura militar, mesmo desgastada àquela altura, consegue dar mais uma cartada e, numa manobra jurídica por meio do Tribunal Superior Eleitoral, é concedido o direito ao uso da legenda a Ivete Vargas, sobrinha de Getúlio Vargas e alinhada aos conservadores. João Trajano de Lima Sento-Sé, cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), fala sobre a disputa entre Ivete e Brizola:

 

O processo de redemocratização foi controlado pelas elites vinculadas aos militares de forma que o poder não escapasse destas mãos. O trabalhismo era o grande fantasma e tinha um nome singular que assustava especialmente: o de Brizola. Os setores conservadores influenciaram decisivamente na vitória judicial de Ivete Vargas. É historiograficamente aceito que a decisão judicial teve clara influência dos militares (SENTO-SÉ, 2018).

 

Derrotado na disputa pela legenda PTB, Brizola funda o PDT. O novo partido, herdeiro do trabalhismo histórico, é bastante influente no processo de redemocratização, agitando as massas por democracia, ou, nas palavras do próprio Brizola, “com essas três letras vamos eletrizar o Brasil”. Aqui temos mais um ponto de destaque na narrativa de Abujamra: os dois mandatos de Brizola como governador do Rio de Janeiro: de 1983 a 1987 e de 1991 a 1994.

 

O primeiro mandato é marcado pela criação dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), projeto elaborado por Darcy Ribeiro. As unidades, com projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer, foram popularmente batizadas de “Brizolões”. A iniciativa era bastante avançada para os padrões do ensino público da época (e até para os dias de hoje), com ensino em tempo integral, muitas atividades esportivas, recreativas e culturais, atendimento médico e odontológico para as crianças, dentre outros serviços. Mas uma parcela da sociedade considerava o projeto dos Cieps caro demais. Brizola respondia que “cara é a ignorância”.

 

Nesse ponto o filme mostra com clareza um embate político que marcaria os mandatos de Brizola no Rio de Janeiro e a esfera pública fluminense: de um lado, os apoiadores de Brizola, aqueles que apostavam na educação e na extensão de um estado de direitos sociais para as camadas mais pobres da sociedade; de outro, adversários de Brizola apostavam na segurança pública e aumento da repressão contra uma criminalidade que, segundo eles, havia se ampliado no Rio de Janeiro comandado por Brizola.

 

Venceu o segundo grupo e, aos poucos, o projeto dos Cieps foi descontinuado. Por outro lado, a situação da segurança pública no estado também piorou. O filme retrata o quanto a má fama com a qual Brizola teve que conviver até o fim de sua vida, de ser um político que contribuiu para o aumento da violência e criminalidade, foi inflada por seus adversários conservadores e pela mídia – principalmente pela Rede Globo. Aliás, o célebre direito de resposta que o caudilho conseguiu na justiça contra a emissora, lido por Cid Moreira no Jornal Nacional, é um dos momentos mais marcantes do documentário e que mais despertou reações da plateia na sessão de estreia.

 

Cabe acrescentar que, ao ser alvo de uma campanha de desconstrução da imagem enquanto suposto responsável por uma crise de segurança pública, Brizola seria só o primeiro de uma sequência de políticos do Rio de Janeiro desgastados por um tipo de marketing eleitoral folclórico da política fluminense que é a criação da figura do político “defensor de bandido”. Geralmente, essa acusação de “defensor de bandido” recai em políticos de esquerda e centro-esquerda. Brizola foi o primeiro (no Rio, chegaram a apelidar cocaína de “Brizola”), seguido por Benedita da Silva, Fernando Gabeira (“quem fuma e cheira vota no Gabeira”, diziam), Marcelo Freixo e até Marielle Franco, ainda que esta não tenha tido tempo para disputar um mandato no Executivo. Setores à direita tiram proveito desse discurso. Curiosamente, governadores que foram efetivamente parar na cadeia, como Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, não sofreram com essa pecha.

 

A acusação a Brizola não é amparada em dados concretos sobre criminalidade. Passados 30 anos do fim de seu segundo mandato como governador, a violência no estado do Rio de Janeiro segue alarmante, inclusive com o aprofundamento do problema das milícias e o aumento de sua infiltração no estado. O sociólogo José Cláudio Alves, com pesquisa sobre a violência no Grande Rio, ressalta essa falta de fundamentação na desconstrução da imagem do velho caudilho.

 

Ao meu ver isso é uma espécie de criação de um bode expiatório político. O Brizola tinha uma política de não abuso, não violência contra membros de favelas e comunidades pobres, por conta da própria lógica do populismo, da qual o Brizola vem - herança de Getúlio Vargas, de um poder calcado no popular (ALVES, 2010).

 

Mesmo sucateado com o passar dos anos, o projeto dos Cieps ainda influenciaria outras iniciativas de ensino público no Brasil, como os Centros de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (Caics), do governo Collor, e as Escolas do Amanhã, do governo Eduardo Paes no município do Rio. O filme nos mostra a inspiração brizolista sobre os Caics. Nesse ponto, o diretor Abujamra parece superdimensionar o peso da influência de Brizola em Collor como uma das possíveis razões que culminariam no processo de impeachment deste último, ao levantar a hipótese de um Roberto Marinho bastante insatisfeito com Collor por causa do projeto das escolas federais, brizolistas demais para o gosto do barão da comunicação. A insatisfação do megaempresário, adversário político de Brizola, teria sido, na perspectiva do filme, crucial para que a Globo retirasse o apoio político dado a Collor e que anos antes ajudara a elegê-lo.    

 

Outros feitos de Leonel Brizola recebem destaque no filme, como a criação do Sambódromo, em 1984, que foi cercada de polêmicas e críticas – para variar – das Organizações Globo. “Contrária às novas regras, inclusive o desfile em dois dias, a TV Globo e O Globo boicotaram a obra e praticamente torciam para ela não ficar pronta a tempo. Diariamente, um ‘especialista’ era chamado a opinar para criticar o projeto” [2].

 

Lançado no ano em que se completam 40 anos de Sambódromo e 20 da morte de Leonel Brizola, o documentário nos ajuda a entender o cenário político brasileiro do século 20 e suas continuidades no século 21. E deixa no espectador uma sensação de que o Brasil seria melhor se Brizola tivesse podido fazer mais, como bem disse o organizador do festival antes do início da exibição. Para quem quiser saber mais sobre Brizola e o trabalhismo, recomendamos o artigo de Ângela de Castro Gomes, cujo nome é justamente “Brizola e o Trabalhismo” (GOMES, 2004). Escrito na ocasião da morte de Brizola, a autora fez indagações sobre o futuro do trabalhismo após a morte do velho caudilho. Tais indefinições persistem 20 anos depois.

 

Ainda que seja muito difícil saber se ele vai conseguir se transformar e renovar-se para sobreviver, não há dúvida de que o trabalhismo pode ser reconhecido como uma das ideologias  e  tradições  mais  importantes  da  cultura política do Brasil republicano (GOMES, 2004, p. 19).

 

 

Referências

ALVES, José Cláudio. 'Os dois segmentos que organizam o crime no Rio - o Estado e as facções - saíram vitoriosos'. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. 10 dez 2010. Disponível em: < https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/os-dois-segmentos-que-organizam-o-crime-no-rio-o-estado-e-faccoes-sairam >. Acesso 11 abr 2024.

 

GOMES, Ângela de Castro. Brizola e o trabalhismo. In: Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.11-20, jan./dez. 2004.

 

HISTÓRIA FM 134: Trabalhismo: das origens ao seu desenvolvimento no Brasil. Entrevistador: Icles Rodrigues. Entrevistado: Reinaldo Lohn . [s.l.] Leitura ObrigaHISTÓRIA, 01 mai. 2023. Podcast. Disponível em < https://leituraobrigahistoria.com/podcast/trabalhismo-das-origens-ao-seu-desenvolvimento-no-brasil/ >. Acesso em: 11 abr 2024

 

SENTO-SÉ, João Trajano de Lima. De Getúlio Vargas a Cristiane Brasil, como o PTB passou do trabalhismo histórico aos ataques à Justiça do Trabalho. BBC Brasil. 31 jan 2018. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42881692 >. Acesso em 11 abr 2024.

 

Notas

[1] Fundador do PDT, Brizola ganha documentário sobre sua história

https://www.boletimdaliberdade.com.br/2024/03/20/fundador-do-pdt-brizola-ganha-documentario-sobre-sua-historia/

 

[2] O dia que a TV Manchete destronou a TV Globo na transmissão do Carnaval do Rio

https://bafafa.com.br/arte-e-cultura/carnaval/o-dia-que-a-tv-manchete-destronou-a-tv-globo-na-transmissao-do-carnaval-do-rio


segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Luísa Sonza e a diluição entre o pessoal e o político



Eu não queria falar sobre o famigerado caso de traição sofrido pela cantora Luísa Sonza, até para não incorrer no mesmo problema apontado por Tati Bernardi em sua coluna. Problema este que a escritora e colunista classificou como “lacração das acadêmicas” [1]. Basicamente, a referida lacração foi o grande volume de análises pretensamente intelectualizadas em torno da traição, da reação da cantora e das repercussões do fato. Nas palavras da colunista:

 

Por que mulheres com milhares de horas de boas leituras, que frequentaram renomadas universidades, param o que estão fazendo para cometer pequenos mestrados indigestos com pretensões eruditas e sociológicas sobre uma celebridade que foi traída (e que provavelmente está sofrendo, mas vai ganhar uma fortuna com sua exposição sobre o tema)? Fiquei pensando longos dois segundos e concluí: porque muitas acadêmicas lacradoras vivem na mesmíssima mediocridade gananciosa por cliques. Uns chamam de "Bomba, bomba, traída em boteco chora na TV", e outros de "O patriarcado em um banheiro de bar: Uma análise à luz da ética kantiana e do existencialismo beauvoiriano".

 

Parece-me uma constatação pertinente. Mas, contrariando a análise da escritora e a minha própria vontade, tive que me render à repercussão do caso, ainda que deixando passar um pouco o hype, quando percebi que a polêmica envolvendo a cantora é um exemplo de fenômenos sociais maiores. Primeiro, a diluição da fronteira entre o público e o privado, certamente reforçada pela popularidade crescente das redes sociais nos últimos anos. Segundo, uma outra diluição, que parece ter acelerado nesse mesmo contexto das novas mídias, que é a diluição entre o político e o pessoal. É sobre isso – a relação cada vez mais misturada entre pessoal e político – que quero falar na verdade. E não propriamente sobre uma traição em banheiro de bar.

 

Recapitulando para aqueles que não acompanharam o caso, a cantora Luísa Sonza teria recebido mensagens de fãs denunciando que seu então namorado a traia em um bar do Rio de Janeiro. A reação da cantora foi publicizar o término do relacionamento no programa televisivo de Ana Maria Braga, na Globo, com direito a “textão” [2]. Antes de iniciar a leitura de seu texto, a cantora ressaltou que o texto não era somente sobre ela, "mas sobre tudo que eu vi desde criança e o lugar que isso pega em mim".

 

Ou seja, Sonza partiu de seu drama pessoal para falar em nome das mulheres em geral e criticar certo comportamento masculino: “Hoje vocês não vencem. Hoje eu quebro um ciclo pela minha mãe, por minhas tias, e por todas as mulheres que eu vi minha vida inteira sendo traídas.”

 

Marketing à parte – e o marketing não deve ser desconsiderado em casos como este envolvendo celebridades extremamente midiáticas [3] – ao transformar a traição em um texto-manifesto em cadeia nacional, Luísa Sonza faz de seu drama pessoal um ato político em nome de uma coletividade. O texto teve a pretensão de ser não só sobre a cantora, mas sobre a sua mãe, a sua tia e todas as mulheres. Assim, Sonza se apropria de uma pauta pública e a mistura com seu drama pessoal. É preciso, no entanto, considerar que essa estratégia tem riscos. Vou citar aqui dois problemas e seus respectivos exemplos.

 

O primeiro problema é que assim que a cantora cometer qualquer vacilo em sua vida pessoal (e todos nós estamos sujeitos a deslizes), grande parte da opinião pública vai usar o vacilo pessoal dela para desqualificar a pauta pública a qual ela vinculou seu drama. Um bom exemplo recente foi o da atriz Amber Heard, ex do ator Johnny Depp. Inicialmente, a atriz se colocou como um símbolo das mulheres vítimas de violência doméstica. Mas na medida em que o ator conseguiu reverter o litígio perante a Justiça, que se convenceu que houve manipulação da parte de Heard, o desgaste não pesou apenas contra a pessoa da atriz, mas contra a pauta em geral. Pauta legítima, aliás. Vale a pena assistir a série documental da Netflix chamada “Johnny Depp x Amber Heard”, que conta essa história em três episódios [4].

 

Outro problema é que vento que venta lá venta cá. Se o pessoal é político para você, também será para muitas outras pessoas, com as pautas das mais diversas, algumas, inclusive, divergentes das suas. Um exemplo é o movimento red pill. Muitos dos homens que aderem a tais círculos o fazem por conta de dramas pessoais, como rejeição ou relacionamentos conturbados. Dramas normais do cotidiano e, muitas das vezes, legítimos (não é vergonha sofrer por causa de rejeição, traição e coração partido). O problema é que de um papo de bar com fins de desabafo para análises sociológicas equivocadas é um pulo. E atualmente já é possível ver nesses círculos, por exemplo, uma campanha de descrédito da Lei Maria da Penha, culpabilizando a vítima que dá nome a lei. Os adeptos desses grupos também estão partindo do pessoal para o político e aderindo a ideias bastante perigosas.

 

É possível que questões ligadas à sexualidade sejam um fator de arregimentação política e, a partir delas, os indivíduos assimilem outras ideias e posicionamentos que os consolidam em um espectro político, seja à esquerda ou à direita. O jornalista Cesar Baima escreveu um artigo sobre o que chamou de “paradoxo do contágio ideológico” [5], uma tendência que as pessoas têm de, pouco a pouco, irem assimilando ideias que as consolidam numa determinada tribo política. Baima explica:

 

Para ser um suposto "conservador" ou "de direita" não basta mais defender o liberalismo econômico e o Estado mínimo, entre outras pautas típicas relacionadas a esta vertente de opinião. Para muitos, é preciso também ser antivacina, antiglobalista, negar as mudanças climáticas, duvidar da lisura dos processos eleitorais e aderir a teorias conspiratórias como estas e outras que também passaram a ser associadas a esta posição política.

 

Não que o outro lado do espectro partidário esteja livre do mesmo problema. Hoje, para ser um legítimo "progressista" ou "de esquerda", muitas vezes também não é suficiente apoiar o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária, com inclusão econômica e social, e um papel ativo do Estado na economia. É preciso também aderir a um estilo de vida "natureba", a favor de produtos orgânicos e contra o uso de agrotóxicos e organismos geneticamente modificados (OGMs), e ter uma - ou mais - "pseudociência" do coração, como homeopatia, Reiki, Constelação Familiar ou qualquer outra das muitas chamadas "práticas integrativas e complementares" (PICs) na saúde.

 

Baima apresenta pesquisas e hipóteses sobre o fenômeno “em que identidades políticas se expandem para incluir cada vez mais pautas e crenças ‘requeridas’ dos sócios de carteirinha”. É por esse contágio ideológico que as identidades políticas são consolidadas. E pensar que questões pessoais e íntimas de nossas vidas possam ter papel preponderante na consolidação de nossas posições políticas é algo que deve nos ajudar a ser mais alertas e autocríticos. Afinal, será que faz sentido, por exemplo, você abraçar algum revisionismo ideológico histórico equivocado só porque você é homem? Vamos supor que por conta de alguns dissabores pessoais em seu histórico de relacionamento com mulheres, você, homem, hoje em dia acredite e defenda publicamente que o regime nazista foi baseado em uma doutrina política de esquerda.

 

É uma conjectura de minha parte que soa absurda, parece não fazer o menor sentido, algo sem conexão alguma. Mas em uma de minhas pesquisas, na qual investiguei quem são as pessoas que afirmam que o nazismo foi um movimento de esquerda (contrariando a bibliografia canônica da história e da ciência política, que demonstra que o nazismo foi de extrema-direita), para a minha surpresa (mas não muita), identifiquei que a maioria esmagadora daqueles que fazem tal afirmação revisionista equivocada é de homens [6].

 

Era de se esperar que a composição desse grupo de pessoas fosse predominantemente de adeptos da direita política (o que se confirmou) e, mais especificamente, de bolsonaristas (o que também se confirmou), mas o inusitado, que saltou aos olhos pela superioridade numérica, foi a questão do gênero masculino.

 

Se pensarmos racionalmente, não faz nenhum sentido que homens sejam mais propensos a acreditar erroneamente que o nazismo foi de esquerda, mas a política não é um campo tão racional assim. Adotamos certas ideias por conta de afetos, subjetividades, razões inconfessáveis. Gostamos de nos ver como racionais, mas não somos bem assim. A parcela de racionalidade na política deve ser mantida ou ampliada por meio de um esforço contínuo da nossa parte que envolva autocrítica e autoconhecimento.      

 

Quem pesquisa os movimentos conservadores, reacionários, de direita e extrema direita pelo mundo sabe que a sexualidade e o machismo têm um peso forte na consolidação desses grupos políticos. Para o sociólogo Michael Lowy, “em todos os países, seja na Europa, nos Estados Unidos, ou no Brasil, a extrema-direita racista, autoritária, ou fascista é predominantemente masculina" [7]. Somando isso aos usos políticos do passado enquanto ferramenta importante para as narrativas de grupos políticos, começamos a puxar um fio sociopolítico que nos faz entender por que, dentre aqueles que repetem o revisionismo ideológico de que o nazismo foi um movimento de esquerda, a esmagadora maioria é formada por direitistas e homens.

 

Fazer esse tipo de reflexão nos torna mais atentos sobre o quanto nossas frustrações e angústias, muitas das vezes de cunho predominantemente pessoal, podem estar a nos direcionar para essa ou aquela ideia. Essa tomada de consciência deve nos ajudar a estabelecer alguma divisória entre o político e o pessoal. Mesmo que a separação nunca possa ser totalmente precisa.  

 

Desde muitos anos é comum ouvir gente bradando que o pessoal também é político. Está correto. Mas hoje em dia, mais do que nunca, é preciso refletir sobre essa mistura e pensar alguns limites a respeito, porque quando a mistura se dá por completo, sem perceber a gente passa a decidir eleições de gestores públicos com base em chifre que sofremos nas relações afetivas. Nossas subjetividades pessoais nem sempre são boas conselheiras nos engajamentos políticos.

 

Referências:

[1] A traição do ator, a sofrência da atriz e a lacração das acadêmicas

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/tatibernardi/2023/09/a-traicao-do-ator-a-sofrencia-da-atriz-e-a-lacracao-das-academicas.shtml

 

[2] Leia texto completo de Luísa Sonza sobre término com Chico Moedas

https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2023/09/20/leia-texto-completo-de-luisa-sonza-sobre-termino-com-chico-moedas.ghtml

 

[3] Luísa Sonza e Chico Moedas: como desabafos públicos de celebridades podem ser um bom negócio

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnkgkzkz802o

 

[4] Johnny Depp x Amber Heard

https://www.netflix.com/br/title/81644798

 

[5] O paradoxo do contágio ideológico à esquerda e à direita

https://revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2023/09/14/o-paradoxo-do-contagio-ideologico-esquerda-e-direita?fbclid=IwAR3gjspoLDgWJg8LreieLC6b3ddktnlYIHDJh1QPogYC_IWiYuxt-_JdkwE

 

[6]

CAMPOS, Alexandre Freitas. “Nazismo de esquerda”: análise de uma fake history a partir de vídeo da embaixada e consulado alemães. In: 44º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2021. Disponível em: < https://www.portalintercom.org.br/anais/nacional2021/resumos/dt5-cd/alexandre-freitas-campos.pdf?fbclid=IwAR0JhS6Cl6AqPXNrR6zc3pkXK3C7zt937R_OefBOJm77tmeSUDkKNauifas >.  

 

[7] É a frustração masculina que decide os rumos políticos do Brasil hoje

https://www.vice.com/pt/article/wj3qay/e-a-frustracao-masculina-que-decide-os-rumos-politicos-do-brasil-hoje

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Red pills x blue pills: maniqueísmo e tabu em um debate delicado

 


Neste artigo, quero falar sobre uma discussão que frequentemente me incomoda, pelo tanto de exagero, militância e enviesamento político, da parte de adeptos e de críticos: a discussão que envolve os tais movimentos masculinistas, dentre eles, a red pill. Farei essa análise a partir de um episódio de podcast que se propõe a criticá-los, para reforçar que as críticas a esses grupos também têm lá os seus problemas: exagero, militância e enviesamento político.

 

De acordo com o vocabulário masculinista, os red pills seriam homens que despertaram para a realidade a respeito de um sistema que favorece as mulheres. Desconsiderando muitas e muitas evidencias sócio-históricas da dominação de mulheres por homens em tantas sociedades patriarcais, esses homens se veem portadores de um conhecimento privilegiado e não acreditam nas relações com mulheres.

 

Ao contrário, os blue pills seriam homens que ainda não viram a verdade, portanto continuam a viver uma ilusão, dominados e usados pelas mulheres. Blue pills e red pills são uma analogia retirada do filme Matrix, na qual o protagonista precisa decidir entre tomar a pílula azul, que o mantém preso em um mundo de ilusão, ou a pílula vermelha, que o faz ver a realidade como tal. No extenso vocabulário masculinista, há ainda outras categorias e cores: black pills, sigmas etc.

 

Depois de tantos canais dedicados a “filosofia” red pill, surge um dedicado à blue pill. O Bluecast. Aparentemente, uma proposta vinda do humorista Thiago Santinelli para zoar os reds. Os blue pills seriam, ao que me parece, homens identificados com uma esquerda identitária (na falta de um nome melhor que me ocorra).

 

O viés político é bastante forte nessas discussões envolvendo grupos masculinistas. E assistindo a um episódio do canal Bluecast, em que Santinelli entrevista a militante comunista/feminista Carolline Sardá sobre “O que é ser homem” [1] (de início me pareceu estranho, já que ela é uma mulher. Mas ok, vá lá...), me lembrei do porquê não gosto dessas discussões sobre movimentos masculinistas e em geral acho tudo bem ruim.

 

Geralmente são discussões de 8 contra 80. Explico: do lado da red, culpam as mulheres por tudo, há muita misoginia e muita, mas muita pseudociência. Como bobagens sobre macho “alfa” e macho “beta” que tiram do mundo animal e tentam aplicar à força no comportamento humano social. Há também um forte reforço de papeis de gênero, por vezes apelando às pseudociências (pra variar), como quando dizem que certas atividades podem gerar desequilíbrios ampliando energias masculinas ou femininas [2] (por exemplo, não seria recomendável aos homens lavar a louça, pois isso reforçaria uma energia feminina nesses homens). Os mais radicais da red pill possuem um discurso que pode embasar violência doméstica e contra mulheres, inclusive há uma campanha em curso para desacreditar a Lei Maria da Penha. Soma-se a tudo isso a adesão a todo tipo de radicalismo de direita.  

 

Mas, por outro lado, dentre os principais críticos da red – que em geral são alinhados a uma esquerda identitária  – o discurso é construído sempre de forma a romantizar a mulher e blindá-la de qualquer crítica, e daí vira um tabu posicioná-la enquanto partícipe de quaisquer processos de marginalização masculina (e aqui não falo em “culpa” da mulher, mas em “participação”, daí a palavra “partícipe”. Esse ponto precisa ficar bem claro!).

 

Em mais de uma hora de conversa no tal episódio que assisti do Bluecast, Carolline Sardá, Thiago Santinelli e Ítalo Costa apontam a culpa da frustração masculina para os próprios homens, os pais desses homens, o machismo e principalmente o capitalismo. A parte da responsabilização do capitalismo é bastante reforçada. Acho essa parte interessante, porque gosto de discussões e pesquisas que apontem para o quanto questões socioeconômicas atravessam nossos relacionamentos afetivos. Isso significa que nesse ponto – o capitalismo como principal culpado pelas frustrações masculinas – eu até concordei com o que ouvi.

 

O problema é que em mais de uma hora de conversa, enquanto apontavam os culpados pelo crescimento dos movimentos masculinistas, Sardá enfatizava – com o aval de seus colegas –  que as mulheres não têm nada a ver com isso, que o problema é do capitalismo mesmo e é isso aí. Simples assim! Ou seja, assim como outros debates e textos semelhantes que vi sobre o assunto, à esquerda, constrói-se uma narrativa maniqueísta, como se o capitalismo operasse independentemente das pessoas; como se mulheres e capitalismo fossem ambos totalmente apartados. Nem por um minuto sequer Sardá toca no ponto do quanto o comportamento feminino e a visão feminina de mundo e de relacionamentos são também atravessados pelo capital (e olha que estamos falando de mais de uma hora de bate-papo).

 

Mulheres não são seres etéreos. Elas vivem em sociedade e naturalmente incorporam valores, preconceitos e discriminações dessa sociedade. E reproduzem isso nas várias instâncias da vida, incluindo os relacionamentos e, dentre eles, os relacionamentos com os homens.

 

Sendo assim, falar que o problema da frustração masculina é o capitalismo significa falar também do quanto mulheres criam uma valoração dos homens baseada, por tantas vezes, no aspecto financeiro, de modo que aqueles homens com menor poder aquisitivo valem menos como homens, e, aqueles com maior poder aquisitivo valem mais. Fora outras formas de valorações, como raciais, estéticas etc.

 

Aliás, o youtuber Ricardo Thomé, que certa vez debateu com Sardá, tem vídeos interessantes sobre a questão racial do ponto de vista masculino em relacionamentos com mulheres [3]. Thomé, que é negro, fala sobre como pesa nos ombros de homens héteros negros o estereótipo nos relacionamentos amorosos/sexuais, de modo a terem que se encaixar no tipo “negão-sarado-jogador-de-basquete” ou no tipo “bem-sucedido” (ou ainda em qualquer intercessão entre esses dois tipos), caso contrário, sobra para eles a invisibilização e insucesso enquanto parceiros. É o tipo de discussão que pouco se vê em círculos de esquerda liberal (por que será?) e que Thomé, por ser negro, fala com certa propriedade.

 

E assim, a narrativa de Sardá cria uma dicotomia falsa na qual o “capitalismo malvadão” está de um lado e, as mulheres, de outro. Sem mistura, sem intercessão e sem nuances. Aliás, é preciso ser justo. A narrativa não é só dela. Santinelli e Costa estão ali, não como mediadores ou entrevistadores, mas como colegas de prosa, fazendo uma triangulação com Sardá na qual um levanta a bola para o outro a todo momento, como em um jogo de compadres.

 

E assim qualquer crítica ao comportamento feminino vira tabu nos círculos mais à esquerda. A despeito de tabus que tentam minar os debates, a psicologia social tem, sim, indicativos de que, enquanto homens se focam muito mais na aparência física na escolha de parceiras, as mulheres se focam muito mais no status social dos parceiros [4]. Dentre estudos recentes, um que achei interessante, feito com amostras de mais de 100 países, concentrou-se na sexualização de mulheres em redes sociais. O estudo encontrou relação entre a quantidade de selfies sensuais postadas por mulheres e a desigualdade econômica: os resultados sugerem que as mulheres investem mais na beleza quando percebem que recursos valiosos estão mais concentrados nas mãos masculinas, como forma de acessar esses recursos, e que a quantidade de selfies sensuais femininas aumenta em sociedades com maior desigualdade econômica [5].

 

Por outro lado, para evitar que caiamos em preconceitos ao pensar sobre a relação entre sexualidade feminina e capital, é preciso considerar o tanto que o patriarcado e milênios de dominação masculina influenciaram e influenciam nas relações socioafetivas. As últimas décadas foram de grandes e louváveis avanços na direção da igualdade de gênero, mas os comportamentos – de homens e mulheres – ainda não estão no mesmo compasso das mudanças, gerando certa confusão. “As mulheres eram socializadas de forma a serem dependentes e, por isso, podiam fazer certas exigências com relação ao nível social do homem em troca. Sair deste papel não é fácil e a mudança não ocorre em apenas duas ou três gerações depois de milênios de submissão”, explica o psicólogo Oswaldo Rodrigues Jr., do Instituto Paulista de Sexualidade. Ele afirma que “As mulheres tendem, sim, a estabelecer um relacionamento em que o homem seja financeiramente superior” [6].

 

Segundo a psicóloga Valéria Meirelles, a ala feminina ainda continua com posturas antigas, apesar dos avanços. “Elas acham feio quando o homem aceita dividir a conta. Querem as vantagens da modernidade com os benefícios da tradição" [6]. Obviamente, os movimentos masculinistas captam essas incongruências. E discutir esses movimentos deve incluir discutir essas incongruências com franqueza.

 

Mas o material aqui analisado, o episódio do Bluecast, trouxe o mesmo maniqueísmo de sempre que me deixa a sensação de ver um papo de camaradas pregando para convertidos. Se a intenção for engajamento em militância, aí o tom panfletário maniqueísta até que faz sentido. Mas se a intenção é convencer jovens que estão com um pé na Deep Web ou em quaisquer círculos masculinistas a pularem fora, acho que seria preciso menos maniqueísmo e mais honestidade e problematização.

 

Como nem tudo está perdido, em meio a tanto debate e conteúdo embotados de militância e polarização, ainda é possível achar material crítico que se safe. Destaco o artigo “Guerreiros Estoicos, Red Pill, Resiliência e Juventude Abandonada”, de Aldo Dinucci, professor de filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Sem partir para fórmulas fáceis/engajadoras, como fazer condenações morais aos adeptos da red pill, Dinucci, assim com Sardá, também aponta o capitalismo como um potencial culpado pelo sofrimento de uma boa parcela dos homens jovens, mas não exclui expressamente a participação feminina nos processos de marginalização, como se pode perceber neste trecho:

 

Primeiro, entendo que a vida não é nada fácil para a juventude atual: falta de empregos formais (quantos não são os entregadores de comida, os motoristas de Uber), condições terríveis de vida para os pobres (sem saneamento básico, sem lazer, sem educação, sem saúde, sem perspectiva), condições de isolamento para os mais abastados.

 

Não é difícil imaginar por qual razão um jovem pobre de periferia se sentiria um beta: na TV e na tela do computador veem os corpos esculturais de mulheres consideradas superatraentes. Veem também os milionários, com seus supercarros e lanchas, acompanhados sempre de mulheres como aquelas. Os jovens dos condomínios de classe média, por outro lado, têm acesso à mesma realidade virtual. Ambos os grupos não se sentem à altura de se engajarem em uma relação amorosa correspondida, seja com as mulheres idealizadas pela mídia, seja com as que espelham essas idealizações da sociedade de consumo. Assim, saindo à rua e tendo na memória a lembrança das imagens do mundo virtual, não é difícil que um destes conclua que ‘Não sou nada, Jamais serei nada, Não posso sonhar em ser nada’. E efetivamente é esta a mensagem que veiculam em muitos de seus vídeos.

 

Quem lê o artigo de Dinucci percebe que o comportamento feminino, também atravessado pelo capital (e porque seria diferente?), acaba por se tornar uma caixa de ressonância da marginalização de muitos homens, ainda que não seja essa a intenção das mulheres: ressoa no campo sexual e afetivo a marginalização socioeconômica, dobrando essa marginalização.

 

O panfletismo das militâncias é pouco sensível a nuances. E isso gera dificuldades para se discutir o tema.


Referências:

[1] O que é ser homem?

https://www.youtube.com/watch?v=stFtLn4F-l0

 

[2] Energia masculina e feminina | Existe? Como surgiu essa ideia? A quem esse conceito serve?

https://www.youtube.com/watch?v=M4XjV2gBbxg

 

[3] Invisíveis no mercado: masculinidade negra e o problema da palmitagem

https://www.youtube.com/watch?v=0fpqBA2cSi8

 

[4] O parceiro ideal

https://www.instagram.com/p/CoSW9xFp9tS/?img_index=1

 

[5]

Blake, K. R., & Brooks, R. C. (2019). Status anxiety mediates the positive relationship between income inequality and sexualization. Proceedings of the National Academy of Sciences, 116(50), 25029-25033.

https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1909806116

 

Blake, K. R., et al. (2018). Income inequality not gender inequality positively covaries with female sexualization on social media. Proceedings of the National Academy of Sciences, 115(35), 8722-8727.

https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1717959115

 

[6] Mulheres preferem homens com dinheiro? História ajuda a responder

https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2013/02/20/mulheres-preferem-homens-com-dinheiro-historia-ajuda-a-responder.htm?fbclid=IwAR1vaGDEu5dTrDHECCfifkuitS9uaJLXFHIczNxZjUu4LmhNTocZZfL18JI

 

[7] Guerreiros Estoicos, Red Pill, Resiliência e Juventude Abandonada

https://anpof.org.br/comunicacoes-leitura.php/coluna-anpof/guerreiros-estoicos-red-pill-resiliencia-e-juventude-abandonada?cat=coluna-anpof&code=guerreiros-estoicos-red-pill-resiliencia-e-juventude-abandonada&fbclid=IwAR0Scden3TVGDJTWWxb1FHNep3dRfo5hoEfRTXmnmlA2iBnt7aJohmhywc0


sábado, 22 de julho de 2023

Isso não é muito Black Mirror? As tecnologias e a sexta temporada da série

 

Black Mirror (Netflix) é uma das séries de streaming mais criativas e icônicas dos últimos anos. Lançada em 2011, de lá para cá, poucas obras conseguiram sintetizar realidades distópicas de forma tão bem conectadas com nossa atual sociedade da informação. E a palavra “conectada” vem bem a calhar. Sucesso de público e crítica, Black Mirror chegou em 2023 a sua sexta temporada, porém, mais do que nunca dividindo opiniões. Muita gente torceu o nariz. Black Mirror não só estaria diferente, mas diferente para pior! Estaria a série, escrita por Charlie Brooker, passando por uma crise de identidade?

 

Contrariando a maioria das críticas sobre a nova temporada de Black Mirror às quais eu tive acesso, gostei do que vi. Achei esta nova temporada muito boa. Uma das melhores, aliás. E, analisando as reações em boa parte negativas, achei necessário fazer algumas considerações.

 

Antes de mais nada, é preciso ressaltar que ao longo de suas cinco temporadas anteriores, a série demonstrou muita personalidade. Suas características foram tão marcantes que no Brasil o bordão “isso é muito Black Mirror” se popularizou, normalmente para se referir a alguma situação inusitada envolvendo algum dispositivo tecnológico.

 

Pois em grande medida, as críticas negativas em relação à nova temporada partem justamente da percepção de que a série mudou e, agora, “não é muito Black Mirror". Principalmente porque, segundo os críticos, esses novos episódios não teriam muito a ver com tecnologia.

 

Anitta não curtiu

Talvez a crítica mais famosa no Brasil nesse sentido tenha sido a da cantora Anitta, que por meio de sua rede social questionou os rumos da série: “Alguém mais assistiu Black Mirror e não entendeu nada do porquê a série não é mais o que era? Parece até outra série. Não é mais sobre tecnologia, agora é 'thriller' aleatório, os diálogos mal feitos, as histórias bobas sem propósito... Que doideira. O único episódio que segue o estilo da série é o primeiro... O resto vai só ladeira abaixo”, escreveu a cantora [1].

 

O questionamento da cantora sintetiza o de muita gente. Para entender se a crítica realmente procede, em vez de tentar analisar apenas a série em si, achei preciso analisar também a recepção à série, ou seja, a sua audiência. Para isso, lanço a seguinte pergunta: qual o seu conceito de tecnologia?

 

Nem tanto tecnologia, nem tanto comportamento humano. O foco de Black Mirror está na mediação entre ambos

Antes de tentar respondê-la, vale ressaltar que é controverso definir Black Mirror como uma série que fala sobre tecnologia. Obviamente, quem conhece a série sabe que as tecnologias têm amplo destaque, protagonizando as tramas juntamente com seus personagens. Mas a coisa é mais complexa, como explica Fernanda Talarico:

 

Black Mirror (...) se consagrou como uma série que utiliza das inovações tecnológicas e da mídia como ponte para comentar questões sociais contemporâneas. (...) Não é - e nunca foi - exclusivamente sobre tecnologia. (...) Também é sobre tecnologia, mas é ainda mais sobre mídia e sociedade [1].

 

É uma boa análise, mas para tentar ser mais preciso, afirmo que Black Mirror é mais do que sobre mídia. É sobre mediação. O foco da série está na mediação entre o comportamento humano e as tecnologias, com um acento nas tecnologias da informação e comunicação, as chamadas “TICs”. E a mediação é uma via de mão dupla. Funciona da seguinte maneira: o comportamento humano, com seus vieses, sentimentos, falhas, obscuridades, se apropria das tecnologias; por outro lado, essas tecnologias também influenciam o comportamento humano, gerando mudanças, às vezes ampliando problemas. Black Mirror é, portanto, uma série sobre a mediação entre o comportamento humano e os dispositivos tecnológicos.

 

A nova temporada tem cinco episódios: o primeiro, “A Joan é péssima”, é sobre uma mulher comum que descobre que um serviço de streaming transformou sua vida e intimidade em uma série vista pelo grande público; o segundo, “Loch Henry”, sobre a produção de um documentário em uma pacata cidade escocesa; o terceiro, “Beyond the Sea”, traz dois astronautas em uma arriscada missão espacial no ano de 1969; “Mazey Day”, quarto episódio, tem uma atriz famosa fazendo de tudo para escapar de paparazzi que disparam flashes como metralhadoras; e o quinto e último, “Demônio 79”, é sobre uma assistente de vendas que, em 1979, descobre que precisa cometer atos terríveis para impedir um apocalipse. 

 

Diferentemente do que afirma a cantora Anitta, as tecnologias estão nos episódios o tempo inteiro, inclusive em primeiro plano. E isso não ocorre apenas no primeiro episódio, como ela afirma (já o quinto episódio é uma exceção, pois de fato não há um protagonismo de dispositivos tecnológicos. Vamos analisa-lo mais adiante). O problema é o que é considerado tecnologia. Por isso, retomamos a pergunta: qual o seu conceito de tecnologia?

 

Tecnologia não é necessariamente inovação

Aqueles que acharam que esta última temporada de Black Mirror "não é muito Black Mirror" na verdade possuem uma visão de tecnologia muito associada a inovação, a futurismo e coisas high-techs. Mas tecnologia não é necessariamente inovação e não precisa ter cara de futuro. O videotape, protagonista do segundo episódio, e a fotografia, protagonista do quarto episódio, são tecnologias, inclusive com o uso de telas (o tal "espelho negro" que inspira o nome da série).

 

A tecnologia é um produto da ciência e da engenharia que envolve um conjunto de instrumentos, métodos e técnicas que visam a resolução de problemas. Ela é uma aplicação prática do conhecimento científico, nas mais variadas áreas do saber, para resolver coisas específicas.

 

Como explica o sociólogo Alan Mocellin, a tecnologia envolve um conjunto de práticas visando a execução de um determinado fim. “A tecnologia tem como seu horizonte totalizante o discurso científico, sendo derivação prática desse discurso” (2015, p. 83). Ou seja, ela é a face prática da ciência, quando você pega um conjunto de saberes e aplica para criar coisas ou procedimentos que possibilitem a resolução de algo concreto.

 

A palavra “tecnologia” vem do grego “tekhne“, que significa “técnica, arte, ofício”, juntamente com o sufixo “logia“, que significa “estudo” [2]. Quando pensamos em tecnologia, costumamos imaginar coisas “modernosas”, como satélites e computadores, mas as tecnologias são desenvolvidas pelos homens desde tempos primórdios. As tecnologias primitivas ou clássicas, por exemplo, envolvem a descoberta do fogo, a invenção da roda, a escrita, dentre outras.

 

Videotape

Anitta não deixa clara a sua percepção pessoal de tecnologia, mas temos bons indícios dessa percepção de tecnologia necessariamente associada a inovação nos comentários de alguns críticos youtubers que abordaram a sexta temporada da série. São os casos de Peter Jordan, do canal “Ei Nerd” [3], e de Michel Arouca, do canal “Série Maníacos” [4]. Peter Jordan, ao comentar sobre o segundo episódio, “Loch Henry”, diz que ele “não trata de tecnologia. Não tem nada de futurista ali”. Repare como a palavra tecnologia está associada a algo do futuro. O comentário está parcialmente certo (ou seja, também parcialmente errado): de fato não há futurismo no episódio. Porém, a tecnologia está ali o tempo inteiro.

 

Estou falando do videotape e das antigas câmeras de vídeo, incluindo seus visores e a tela da TV, conectada ao vídeo, reproduzindo as imagens gravadas nas fitas magnéticas VHS. Hoje tudo isso soa antigo, mas o videotape teve seu papel na história das mídias e, por consequência, na história das sociedades. Para ser mais preciso, na história da mediação entre o comportamento humano e os dispositivos tecnológicos de comunicação. Interessante a maneira como Black Mirror mostra como os diversos meios de comunicação influenciam no comportamento humano.

 

Uma das melhores obras para apresentar o peso do videotape é o documentário romeno “Chuck Norris vs Communism” (2015) [5], um retrato dos últimos anos de Guerra Fria a partir da Romênia socialista, quando fitas VHS de filmes internacionais e aparelhos de vídeo domésticos não eram permitidos. Apesar disso, o país é inundado de fitas piratas com grandes produções cinematográficas estadunidenses. Forma-se uma cultura de videoclubes improvisados em residências e uma rede de tráfico de fitas piratas que envolveria até agentes do estado e incluiria uma dublagem pirata rudimentar. O videotape contribuiria para mudanças culturais que, por sua vez, acelerariam a abertura do regime. Tudo soa surreal visto a partir do mundo de hoje, mas foi real. Isso é muito Black Mirror e de fato ocorreu.

 

Fernanda Talarico, ao também analisar “Loch Henry”, afirma que “no caso deste capítulo, não há intervenções tecnológicas e a crítica presente é sobre como lidamos e consumimos produções de crimes reais. Novamente, o uso da mídia e comportamento da sociedade é o explorado” [1]. De fato, o uso da mídia e o comportamento da sociedade são tratados, mas não dá para dizer que as intervenções tecnológicas não estejam no episódio, fazendo a mediação com o comportamento dos personagens e protagonizando a trama. Ou seja, assim como Peter Jordan, ela não viu tecnologia ali. Mas há. E muita!

 

Fotografia

Peter Jordan prossegue em sua crítica à temporada como um todo e afirma que “A sexta temporada é menos futurista. Menos high-tech de todas”. Tem razão. E essa fala é mais um indício da concepção de tecnologia associada a inovação. E lamenta: “era muito comum, desde o início da série, os episódios serem construídos a partir de um argumento que era o de que a tecnologia vai te desumanizar”. Ele acerta em identificar a proposta da série – e essa desumanização por meio da tecnologia está incluída no que falamos sobre mediação –, mas não consegue vê-la no quarto episódio, “Mazey Day”, considerado por ele o pior de todas as temporadas da série. O youtuber diz que se trata de um episódio “totalmente aleatório”. Mas não é. A desumanização mediada pela tecnologia – no caso, pelas câmeras fotográficas – está posta.

 

Na história, os paparazzi, incapazes de alguma empatia com o sofrimento da atriz, disparam flashes sobre ela ininterruptamente, em busca da recompensa que é o valor em dinheiro do registro fotográfico de seu sofrimento. A atriz, por sua vez, se transforma em algum tipo de criatura sobrenatural sob a luz da Lua cheia. Embora ela esteja literalmente desumanizada, aqueles fotógrafos, na caçada contra ela, mediados por suas lentes, já não possuem senso de humanidade nem mesmo entre eles.

 

Em muitas culturas já se acreditou que a fotografia roubava a alma da pessoa fotografada. Essa crença persiste, por exemplo, em diversas culturas indígenas do Brasil. É o caso dos yanomami, que, em meio a uma enorme crise sanitária pela qual passaram em 2022, sentiram-se perturbados por conta de um choque cultural decorrente da exposição e compartilhamento de fotos de seus integrantes. Como explica o escritor, professor e ativista indígena Daniel Munduruku:

 

Existe um ensinamento que vem de muito tempo: os indígenas não permitem tirar fotos porque a foto roubaria a alma da pessoa que teve sua imagem fotografada. Isso tem muito a ver com a compreensão que muitos povos indígenas têm de que, ao morrer, a gente precisa esquecer a pessoa que morreu. A fotografia, de uma certa maneira, traz a pessoa [morta] de novo para o cenário dos vivos. E isso causa um conflito espiritual e um sentimento de que houve quebra na espiritualidade [6].

 

A ideia pode soar estranha para nossa cultura ocidental de base eurocêntrica, mas, mal comparando, podemos pensar nos dilemas éticos dos quais tratamos hoje em dia nos casos envolvendo a inteligência artificial e seus usos para “ressuscitar” atores e cantores já falecidos. Um exemplo é a polêmica em torno do recente comercial da montadora Volkswagen que junta a cantora Maria Rita e uma recriação de Elis Regina feita em IA [7]. O uso da tecnologia para “ressureições” desse tipo ainda nos gera estranheza, desconforto. 

 

Entre a fotografia e a IA, um videogame já se envolveu em um dilema ético parecido. Há mais de uma década, o jogo “Guitar Hero 5” provocou controvérsias e desconforto por possibilitar que um tipo de avatar de Kurt Cobain, falecido vocalista da banda Nirvana, pudesse ser usado para interpretar canções de outros artistas, inclusive daqueles que o próprio Kurt Cobain possivelmente não interpretaria [8]. Dilemas relativamente parecidos, em dispositivos tecnológicos diferentes, cada qual com suas particularidades. 

 

Ainda em se tratando da cultura ocidental de base eurocêntrica, por outro lado, as primeiras fotografias eram vistas como uma passagem para a imortalidade. Havia algo de poético e bizarro na aura da então nova tecnologia. Eram comuns as fotos pós-morte: fotografavam-se pessoas recém-falecidas como se elas ainda estivessem vivas. Isso porque a fotografia era usada como uma forma de preservar a vida para gerações futuras [9]. Era o contrário dos yanomami.

 

Por tudo isso, por que não trazer a fotografia para Black Mirror? Muitos dilemas podem ser explorados a partir dela. Do mesmo modo que a ficção científica em geral se vale de signos do futuro para, no fundo, falar sobre questões do presente, é possível fazer parecido, no sentido inverso: usar signos do passado para tratar de dilemas do presente. Nesse sentido, a fotografia poderia render um bom enredo sobre o uso da tecnologia para vencer a morte e de algum modo voltar à vida. Algo semelhante ao que fez o episódio “Be Right Back”, da segunda temporada, eleito o melhor da série pelo jornal El País [9]. Ou quem sabe algo que explore a estranheza decorrente dessa “ressurreição”, semelhante a que a IA nos provoca quando usada para recriar imagens em movimento de artistas falecidos. A fotografia é muito Black Mirror!

 

“Eu confesso que senti falta de um episódio futurista. Essa série está prevendo tecnologia bizarra há muito tempo”, diz Michel Arouca, iniciando sua crítica à sexta temporada e, de certo modo, reverberando a concepção de tecnologia necessariamente associada a inovação. Em seguida, ao falar especificamente sobre “Mazey Day”, pergunta “por que isso seria um episódio de Black Mirror? Cadê o espelho preto que dá título à série? ” Respondo: na lente da câmera fotográfica!

 

Espelhos pretos do passado e do presente

O que a sexta temporada de Black Mirror faz é um passeio no passado e pela história das mídias para mostrar antigos espelhos pretos e nos lembrar que, ao menos em parte, o que vivemos hoje em nossas mediações com o espelho preto da tela do celular e com o mundo digital em geral já nos rondava por meio de outras tecnologias da informação e comunicação. E é uma pena que a visão de tecnologia restrita a inovação impeça alguns de aproveitar melhor esse passeio. Black Mirror, ao explorar mais o seu lado retrô, nos ajuda a desconstruir essa visão. E explorar o passado é uma forma de a série contextualizar questões, nos mostrar como chegamos onde chegamos.  

 

Cabe lembrar que desde as primeiras temporadas a série sempre se valeu de alguns signos e estéticas do passado para dar uma embaralhada no tempo. Algo que me chamou a atenção logo na primeira temporada, no episódio “The Entire History of You”, do microchip que grava tudo que os olhos veem, é como uma tecnologia tão avançada podia conviver na mesma história com painéis de carros tão vintage. Mas é porque o foco de Black Mirror não é bem o futuro, mas a distopia.  

 

A tecnologia em “2001, uma odisseia no espaço”

Há um clássico cinematográfico que pode nos ajudar a apreciar a sexta temporada da série com menos apego ao futurismo, pois traz uma abordagem de tecnologia semelhante a que aqui apresentamos. É “2001, uma odisseia no espaço” (1968), do diretor Stanley Kubrick. Um filme que nos faz pensar sobre os usos da tecnologia desde os primórdios hominídeos até as naves espaciais desenvolvidas por nós, Homo sapiens.

 

Em uma sequência espetacular [11] – que mesmo aqueles que nunca assistiram ao filme conhecem –, vemos um macaco segurando um grande osso. Ele para, pensa, olha para o osso, olha para o chão, bate o osso no chão, bate com o osso em outros pedaços de ossos que estavam espalhados pelo chão e que se quebram com a pancada. O macaco parece ter uma espécie de revelação!

 

Extasiado, o animal estava naquele momento descobrindo que aquele pedaço grande de osso que estava em sua mão poderia ser usado para quebrar coisas, ou seja, como um tipo de ferramenta, e também como arma, para ferir e abater outros animais. Era o início do uso da tecnologia, um passo a mais no estágio evolutivo da espécie. Vemos na cena o macaco pensando, usando o seu saber, testando o osso como ferramenta. Cada pequena pancada era um teste. A verificação por meio de testes seria uma forma rudimentar de fazer ciência, para finalmente chegar ao domínio de uma nova tecnologia.

 

Na sequência seguinte, em um conflito entre dois grupos de macacos, aquele cujos membros estavam com ossos nas mãos usando-os como armas levou a melhor. Eles bateram em seus adversários e dominaram o território. A sequência termina com um dos vencedores jogando o osso/arma para o alto. Esse osso se transforma em uma nave espacial, em uma das mais famosas e importantes elipses [12] da história do cinema, simbolizando todo o desenvolvimento tecnológico dos primórdios até o que havia de mais moderno naquela década. A história da humanidade em dois planos. O comparativo entre o osso e a nave deixa clara a intencionalidade do filme de ressaltar o osso como um artefato tecnológico.

 

Quinto e último episódio

Até aqui defendi a sexta temporada, por entender que a crítica feita a ela, em grande medida, parte de pressupostos equivocados quanto à proposta da série e quanto ao conceito de tecnologia. Mas essa defesa não funciona tão bem para o quinto episódio, “Demônio 79”. Esse episódio parece ser algum tipo de transição de Black Mirror para alguma outra coisa, alguma outra série. Charlie Brooker chegou a comentar que pretendia dar início a um outro projeto que se chamaria “Red Mirror” [13]. Inclusive o episódio começa sendo anunciado como uma produção “Red Mirror”.

 

Por isso, este quinto e último episódio me lembrou algum tipo de piloto para alguma nova produção que possa estar por vir. Diferentemente dos quatro episódios anteriores da temporada, aqui não dá para dizer que dispositivos tecnológicos dividem o protagonismo com personagens da trama. As críticas feitas à temporada, se feitas somente ao episódio, seriam cabíveis.

 

Ainda assim, se tentarmos interpretar o episódio sob a luz do que já conhecemos de Black Mirror – e isso significa, também, forçarmos um pouco a barra – podemos enxergar algo de interessante que conecta “Demônio 79” ao restante da série. E convenhamos que interpretar um episódio influenciado pela antologia a qual ele pertence não chega a ser nenhum delírio ou absurdo.

 

É bem verdade que a tecnologia não está em primeiro plano, mas o tal demônio, acidentalmente invocado por uma imigrante vendedora de sapatos, toma a forma de um artista que ela havia visto pela TV e achado atraente. Como ressalta o crítico PH Santos, para quem busca uma interpretação mais literal, o espelho negro está aí [14]. É a televisão! A propósito, é na tela da TV que o demônio confere seu novo visual, tal qual alguém que se retoca em frente ao espelho.

 

Um demônio que se vale de um visual atraente de um artista da TV para corromper uma pessoa normal que, apesar de ser uma pessoa boa, tem os seus impulsos de fúria e devaneios de vingança e, portanto, também é capaz de fazer o mal, pode ser uma metáfora a respeito de muito do que a televisão e em maior extensão os mass media foram e ainda são capazes. Aliás, a mídia de massa – jornais, TV, livros – aparecem com frequência sendo consumida pelos personagens. E também os cartazes. Disseminando o perigo da Guerra Fria, incentivando ou anunciando a xenofobia da qual a protagonista é vítima.    

 

Você pode estar questionando: “mas é claro que os veículos de massa vão aparecer. Estamos falando de uma história passada em 1979!” De fato, aqui neste episódio precisamos fazer algum esforço interpretativo à luz de toda a série. Mas, independentemente do protagonismo ou não das tecnologias da informação e comunicação, o episódio até que funciona bem como um episódio final de Black Mirror. Também porque há nele um político em ascensão que representa um futuro alternativo de paranoia, capitalismo de vigilância, sociedade de controle, punitivismo, preconceito e autoritarismo. Tudo isso são questões já tratadas nos episódios de Black Mirror em suas seis temporadas. Inclusive, no vislumbre que a protagonista tem desse futuro alternativo, há referência aos cachorros-robôs de "Metalhead", episódio da quarta temporada.

 

Um detalhe interessante: “Demônio 79” se passa num 1º de maio do ano de 1979. Naquele mesmo ano e na vida real, dias depois, Margaret Thatcher seria alçada ao cargo de primeira-ministra do Reino Unido, onde se passa a trama. Junto com Ronald Reagan nos EUA, ela foi o principal nome para a consolidação do que se convencionou chamar de neoliberalismo [15], hoje praticamente onipresente em nossa sociedade global e imperando fortemente no modo como as tecnologias são apropriadas. Seria esse alvorecer neoliberal o verdadeiro apocalipse que gera Black Mirror? “Demônio 79”, além de nos ajudar a entender como chegamos ao ponto em que chegamos, pareceu-me um tipo de mito fundacional da série.  

 

Referências:

MOCELLIM, Alan. Comunicação e Reencantamento: retórica ou possibilidade?. Esferas, v. 6, p. 79-87, 2015

 

[1] 'Histórias bobas': Anitta está certa e 'Black Mirror' realmente piorou:

https://www.uol.com.br/splash/noticias/2023/06/26/anitta-esta-errada-black-mirror-nao-e-apenas-sobre-tecnologia.htm

 

[2] Significado de tecnologia

https://www.significados.com.br/tecnologia-2/

 

[3] PIROU DE VEZ! BLACK MIRROR TEMPORADA 6: O QUE EU ACHEI:

https://www.youtube.com/watch?v=FqKcEoAEnF0&t=19s

 

[4] BLACK MIRROR TEMPORADA 6 - Análise completa de todos os episódios!:

https://www.youtube.com/watch?v=or92MH5hTyA

 

[5] Chuck Norris contra o Comunismo:

https://www.youtube.com/watch?v=pKhVDYRA-OY

 

[6] Por que os yanomami não querem ter fotos suas compartilhadas

https://www.dw.com/pt-br/por-que-os-yanomami-n%C3%A3o-querem-ter-fotos-suas-compartilhadas/a-64536528

 

[7] "Como Nossos Pais"? Comercial que reúne Maria Rita e Elis Regina provoca debate sobre canção:

https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/musica/noticia/2023/07/como-nossos-pais-comercial-que-reune-maria-rita-e-elis-regina-provoca-debate-sobre-cancao-cljr2vbfb001o0150ax5jzbeg.html

 

[8] Bon Jovi apoia críticas a videogame com Kurt Cobain:

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2009/09/090917_bonjovinirvanaebc

 

[9] Por que tão sério: já notou que a galera nunca sorria em fotos antigas?:

https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2023/06/18/por-que-pessoas-nunca-sorriam-em-fotos-antigas.htm

 

[10] Black Mirror’: todos os episódios, organizados do pior para o melhor:

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/11/cultura/1515697182_485240.html

 

[11] O pensamento e a descoberta da ferramenta “2001: Uma Odisseia no Espaço”:

https://www.youtube.com/watch?v=9etefsYMm5o

 

[12] Elipse (narrativa)

https://pt.wikipedia.org/wiki/Elipse_(narrativa)

 

[13] Por Que Black Mirror Está Com CRISE DE IDENTIDADE?

https://www.youtube.com/watch?v=AtSzHGgM3Lk&t=19s

 

[14] Black Mirror 6x05 - Red Mirror | Demon 79 - Análise

https://www.youtube.com/watch?v=oeX8D7awdXg

 

[15] O que é neoliberalismo?

https://www.politize.com.br/neoliberalismo-o-que-e/