Black Mirror (Netflix) é uma das
séries de streaming mais criativas e icônicas dos últimos anos. Lançada em
2011, de lá para cá, poucas obras conseguiram sintetizar realidades distópicas de
forma tão bem conectadas com nossa atual sociedade da informação. E a palavra
“conectada” vem bem a calhar. Sucesso de público e crítica, Black Mirror chegou
em 2023 a sua sexta temporada, porém, mais do que nunca dividindo opiniões.
Muita gente torceu o nariz. Black Mirror não só estaria diferente, mas
diferente para pior! Estaria a série, escrita por Charlie Brooker, passando por
uma crise de identidade?
Contrariando a maioria das críticas
sobre a nova temporada de Black Mirror às quais eu tive acesso, gostei do que
vi. Achei esta nova temporada muito boa. Uma das melhores, aliás. E, analisando
as reações em boa parte negativas, achei necessário fazer algumas
considerações.
Antes de mais nada, é preciso
ressaltar que ao longo de suas cinco temporadas anteriores, a série demonstrou
muita personalidade. Suas características foram tão marcantes que no Brasil o
bordão “isso é muito Black Mirror” se popularizou, normalmente para se referir
a alguma situação inusitada envolvendo algum dispositivo tecnológico.
Pois em grande medida, as críticas
negativas em relação à nova temporada partem justamente da percepção de que a
série mudou e, agora, “não é muito Black Mirror". Principalmente porque,
segundo os críticos, esses novos episódios não teriam muito a ver com
tecnologia.
Anitta não curtiu
Talvez a crítica mais famosa no
Brasil nesse sentido tenha sido a da cantora Anitta, que por meio de sua rede
social questionou os rumos da série: “Alguém mais assistiu Black Mirror e não
entendeu nada do porquê a série não é mais o que era? Parece até outra série.
Não é mais sobre tecnologia, agora é 'thriller' aleatório, os diálogos mal
feitos, as histórias bobas sem propósito... Que doideira. O único episódio que
segue o estilo da série é o primeiro... O resto vai só ladeira abaixo”,
escreveu a cantora [1].
O questionamento da cantora sintetiza
o de muita gente. Para entender se a crítica realmente procede, em vez de
tentar analisar apenas a série em si, achei preciso analisar também a recepção
à série, ou seja, a sua audiência. Para isso, lanço a seguinte pergunta: qual o
seu conceito de tecnologia?
Nem tanto tecnologia, nem tanto comportamento humano. O foco de Black
Mirror está na mediação entre ambos
Antes de tentar respondê-la, vale
ressaltar que é controverso definir Black Mirror como uma série que fala sobre
tecnologia. Obviamente, quem conhece a série sabe que as tecnologias têm amplo
destaque, protagonizando as tramas juntamente com seus personagens. Mas a coisa
é mais complexa, como explica Fernanda Talarico:
Black Mirror (...) se consagrou como uma série que utiliza das inovações
tecnológicas e da mídia como ponte para comentar questões sociais
contemporâneas. (...) Não é - e nunca foi - exclusivamente sobre tecnologia.
(...) Também é sobre tecnologia, mas é ainda mais sobre mídia e sociedade [1].
É uma boa análise, mas para tentar
ser mais preciso, afirmo que Black Mirror é mais do que sobre mídia. É sobre
mediação. O foco da série está na mediação entre o comportamento humano e as
tecnologias, com um acento nas tecnologias da informação e comunicação, as
chamadas “TICs”. E a mediação é uma via de mão dupla. Funciona da seguinte
maneira: o comportamento humano, com seus vieses, sentimentos, falhas,
obscuridades, se apropria das tecnologias; por outro lado, essas tecnologias
também influenciam o comportamento humano, gerando mudanças, às vezes ampliando
problemas. Black Mirror é, portanto, uma série sobre a mediação entre o
comportamento humano e os dispositivos tecnológicos.
A nova temporada tem cinco episódios:
o primeiro, “A Joan é péssima”, é sobre uma mulher comum que descobre que um
serviço de streaming transformou sua vida e intimidade em uma série vista pelo
grande público; o segundo, “Loch Henry”, sobre a produção de um documentário em
uma pacata cidade escocesa; o terceiro, “Beyond the Sea”, traz dois astronautas
em uma arriscada missão espacial no ano de 1969; “Mazey Day”, quarto episódio,
tem uma atriz famosa fazendo de tudo para escapar de paparazzi que disparam
flashes como metralhadoras; e o quinto e último, “Demônio 79”, é sobre uma
assistente de vendas que, em 1979, descobre que precisa cometer atos terríveis
para impedir um apocalipse.
Diferentemente do que afirma a
cantora Anitta, as tecnologias estão nos episódios o tempo inteiro, inclusive
em primeiro plano. E isso não ocorre apenas no primeiro episódio, como ela
afirma (já o quinto episódio é uma exceção, pois de fato não há um protagonismo
de dispositivos tecnológicos. Vamos analisa-lo mais adiante). O problema é o
que é considerado tecnologia. Por isso, retomamos a pergunta: qual o seu
conceito de tecnologia?
Tecnologia não é necessariamente inovação
Aqueles que acharam que esta última
temporada de Black Mirror "não é muito Black Mirror" na verdade
possuem uma visão de tecnologia muito associada a inovação, a futurismo e
coisas high-techs. Mas tecnologia não é necessariamente inovação e não precisa
ter cara de futuro. O videotape, protagonista do segundo episódio, e a
fotografia, protagonista do quarto episódio, são tecnologias, inclusive com o
uso de telas (o tal "espelho negro" que inspira o nome da série).
A tecnologia é um produto da ciência
e da engenharia que envolve um conjunto de instrumentos, métodos e técnicas que
visam a resolução de problemas. Ela é uma aplicação prática do conhecimento
científico, nas mais variadas áreas do saber, para resolver coisas específicas.
Como explica o sociólogo Alan
Mocellin, a tecnologia envolve um conjunto de práticas visando a execução de um
determinado fim. “A tecnologia tem como
seu horizonte totalizante o discurso científico, sendo derivação prática desse
discurso” (2015, p. 83). Ou seja, ela é a face prática da ciência, quando
você pega um conjunto de saberes e aplica para criar coisas ou procedimentos
que possibilitem a resolução de algo concreto.
A palavra “tecnologia” vem do grego
“tekhne“, que significa “técnica, arte, ofício”, juntamente com o sufixo “logia“,
que significa “estudo” [2]. Quando pensamos em tecnologia, costumamos imaginar
coisas “modernosas”, como satélites e computadores, mas as tecnologias são
desenvolvidas pelos homens desde tempos primórdios. As tecnologias primitivas
ou clássicas, por exemplo, envolvem a descoberta do fogo, a invenção da roda, a
escrita, dentre outras.
Videotape
Anitta não deixa clara a sua
percepção pessoal de tecnologia, mas temos bons indícios dessa percepção de
tecnologia necessariamente associada a inovação nos comentários de alguns
críticos youtubers que abordaram a sexta temporada da série. São os casos de
Peter Jordan, do canal “Ei Nerd” [3], e de Michel Arouca, do canal “Série
Maníacos” [4]. Peter Jordan, ao comentar sobre o segundo episódio, “Loch Henry”,
diz que ele “não trata de tecnologia. Não tem nada de futurista ali”. Repare
como a palavra tecnologia está associada a algo do futuro. O comentário está
parcialmente certo (ou seja, também parcialmente errado): de fato não há futurismo
no episódio. Porém, a tecnologia está ali o tempo inteiro.
Estou falando do videotape e das
antigas câmeras de vídeo, incluindo seus visores e a tela da TV, conectada ao
vídeo, reproduzindo as imagens gravadas nas fitas magnéticas VHS. Hoje tudo
isso soa antigo, mas o videotape teve seu papel na história das mídias e, por
consequência, na história das sociedades. Para ser mais preciso, na história da
mediação entre o comportamento humano e os dispositivos tecnológicos de
comunicação. Interessante a maneira como Black Mirror mostra como os diversos
meios de comunicação influenciam no comportamento humano.
Uma das melhores obras para
apresentar o peso do videotape é o documentário romeno “Chuck Norris vs
Communism” (2015) [5], um retrato dos últimos anos de Guerra Fria a partir da
Romênia socialista, quando fitas VHS de filmes internacionais e aparelhos de
vídeo domésticos não eram permitidos. Apesar disso, o país é inundado de fitas
piratas com grandes produções cinematográficas estadunidenses. Forma-se uma
cultura de videoclubes improvisados em residências e uma rede de tráfico de
fitas piratas que envolveria até agentes do estado e incluiria uma dublagem
pirata rudimentar. O videotape contribuiria para mudanças culturais que, por
sua vez, acelerariam a abertura do regime. Tudo soa surreal visto a partir do
mundo de hoje, mas foi real. Isso é muito Black Mirror e de fato ocorreu.
Fernanda Talarico, ao também analisar
“Loch Henry”, afirma que “no caso deste
capítulo, não há intervenções tecnológicas e a crítica presente é sobre como
lidamos e consumimos produções de crimes reais. Novamente, o uso da mídia e comportamento da sociedade é o explorado”
[1]. De fato, o uso da mídia e o comportamento da sociedade são tratados, mas
não dá para dizer que as intervenções tecnológicas não estejam no episódio,
fazendo a mediação com o comportamento dos personagens e protagonizando a
trama. Ou seja, assim como Peter Jordan, ela não viu tecnologia ali. Mas há. E
muita!
Fotografia
Peter Jordan prossegue em sua crítica
à temporada como um todo e afirma que “A sexta temporada é menos
futurista. Menos high-tech de todas”. Tem razão. E essa fala é mais um indício
da concepção de tecnologia associada a inovação. E lamenta: “era muito comum,
desde o início da série, os episódios serem construídos a partir de um
argumento que era o de que a tecnologia vai te desumanizar”. Ele acerta em
identificar a proposta da série – e essa desumanização por meio da tecnologia
está incluída no que falamos sobre mediação –, mas não consegue vê-la no quarto
episódio, “Mazey Day”,
considerado por ele o pior de todas as temporadas da série. O youtuber diz que
se trata de um episódio “totalmente aleatório”. Mas não é. A desumanização
mediada pela tecnologia – no caso, pelas câmeras fotográficas – está
posta.
Na história, os
paparazzi, incapazes de alguma empatia com o sofrimento da atriz, disparam
flashes sobre ela ininterruptamente, em busca da recompensa que é o valor em
dinheiro do registro fotográfico de seu sofrimento. A atriz, por sua vez, se
transforma em algum tipo de criatura sobrenatural sob a luz da Lua cheia.
Embora ela esteja literalmente desumanizada, aqueles fotógrafos, na caçada
contra ela, mediados por suas lentes, já não possuem senso de humanidade nem
mesmo entre eles.
Em muitas
culturas já se acreditou que a fotografia roubava a alma da pessoa fotografada.
Essa crença persiste, por exemplo, em diversas culturas indígenas do Brasil. É
o caso dos yanomami, que, em meio a uma enorme crise sanitária pela qual
passaram em 2022, sentiram-se perturbados por conta de um choque cultural
decorrente da exposição e compartilhamento de fotos de seus integrantes. Como
explica o escritor, professor e ativista indígena Daniel Munduruku:
Existe um ensinamento que vem de muito
tempo: os indígenas não permitem tirar fotos porque a foto roubaria a alma da
pessoa que teve sua imagem fotografada. Isso tem muito a ver com a compreensão
que muitos povos indígenas têm de que, ao morrer, a gente precisa esquecer a
pessoa que morreu. A fotografia, de uma certa maneira, traz a pessoa [morta] de
novo para o cenário dos vivos. E isso causa um conflito espiritual e um
sentimento de que houve quebra na espiritualidade [6].
A ideia pode
soar estranha para nossa cultura ocidental de base eurocêntrica, mas, mal
comparando, podemos pensar nos dilemas éticos dos quais tratamos hoje em dia
nos casos envolvendo a inteligência artificial e seus usos para “ressuscitar”
atores e cantores já falecidos. Um exemplo é a polêmica em torno do recente
comercial da montadora Volkswagen que junta a cantora Maria Rita e uma
recriação de Elis Regina feita em IA [7]. O uso da tecnologia para
“ressureições” desse tipo ainda nos gera estranheza, desconforto.
Entre a
fotografia e a IA, um videogame já se envolveu em um dilema ético parecido. Há
mais de uma década, o jogo “Guitar Hero 5” provocou controvérsias e desconforto
por possibilitar que um tipo de avatar de Kurt Cobain, falecido vocalista da
banda Nirvana, pudesse ser usado para interpretar canções de outros artistas,
inclusive daqueles que o próprio Kurt Cobain possivelmente não interpretaria
[8]. Dilemas relativamente parecidos, em dispositivos tecnológicos diferentes, cada
qual com suas particularidades.
Ainda em se
tratando da cultura ocidental de base eurocêntrica, por outro lado, as
primeiras fotografias eram vistas como uma passagem para a imortalidade. Havia
algo de poético e bizarro na aura da então nova tecnologia. Eram comuns as
fotos pós-morte: fotografavam-se pessoas recém-falecidas como se elas ainda
estivessem vivas. Isso porque a fotografia era usada como uma forma de
preservar a vida para gerações futuras [9]. Era o contrário dos yanomami.
Por tudo isso,
por que não trazer a fotografia para Black Mirror? Muitos dilemas podem ser
explorados a partir dela. Do mesmo modo que a ficção científica em geral se
vale de signos do futuro para, no fundo, falar sobre questões do presente, é
possível fazer parecido, no sentido inverso: usar signos do passado para tratar
de dilemas do presente. Nesse sentido, a fotografia poderia render um bom
enredo sobre o uso da tecnologia para vencer a morte e de algum modo voltar à
vida. Algo semelhante ao que fez o episódio “Be Right Back”, da segunda
temporada, eleito o melhor da série pelo jornal El País [9]. Ou quem sabe algo
que explore a estranheza decorrente dessa “ressurreição”, semelhante a que a IA
nos provoca quando usada para recriar imagens em movimento de artistas
falecidos. A fotografia é muito Black Mirror!
“Eu confesso que senti falta de um
episódio futurista. Essa série está prevendo tecnologia bizarra há muito tempo”,
diz Michel Arouca, iniciando sua crítica à sexta temporada e, de certo modo,
reverberando a concepção de tecnologia necessariamente associada a inovação. Em
seguida, ao falar especificamente sobre “Mazey Day”, pergunta “por que isso
seria um episódio de Black Mirror? Cadê o espelho preto que dá título à série?
” Respondo: na lente da câmera fotográfica!
Espelhos pretos do passado e do presente
O que a sexta temporada de Black
Mirror faz é um passeio no passado e pela história das mídias para mostrar
antigos espelhos pretos e nos lembrar que, ao menos em parte, o que vivemos
hoje em nossas mediações com o espelho preto da tela do celular e com o mundo
digital em geral já nos rondava por meio de outras tecnologias da informação e
comunicação. E é uma pena que a visão de tecnologia restrita a inovação impeça
alguns de aproveitar melhor esse passeio. Black Mirror, ao explorar mais o seu
lado retrô, nos ajuda a desconstruir essa visão. E explorar o passado é uma
forma de a série contextualizar questões, nos mostrar como chegamos onde
chegamos.
Cabe lembrar que desde as primeiras
temporadas a série sempre se valeu de alguns signos e estéticas do passado para
dar uma embaralhada no tempo. Algo que me chamou a atenção logo na primeira
temporada, no episódio “The Entire
History of You”, do microchip que grava tudo que os olhos veem, é como uma
tecnologia tão avançada podia conviver na mesma história com painéis de carros
tão vintage. Mas é porque o foco de
Black Mirror não é bem o futuro, mas a distopia.
A tecnologia em “2001, uma odisseia
no espaço”
Há um clássico cinematográfico que
pode nos ajudar a apreciar a sexta temporada da série com menos apego ao
futurismo, pois traz uma abordagem de tecnologia semelhante a que aqui
apresentamos. É “2001, uma odisseia no
espaço” (1968), do diretor Stanley Kubrick. Um filme que nos faz pensar
sobre os usos da tecnologia desde os primórdios hominídeos até as naves
espaciais desenvolvidas por nós, Homo
sapiens.
Em uma sequência espetacular [11] –
que mesmo aqueles que nunca assistiram ao filme conhecem –, vemos um macaco
segurando um grande osso. Ele para, pensa, olha para o osso, olha para o chão,
bate o osso no chão, bate com o osso em outros pedaços de ossos que estavam
espalhados pelo chão e que se quebram com a pancada. O macaco parece ter uma
espécie de revelação!
Extasiado, o
animal estava naquele momento descobrindo que aquele pedaço grande de osso que estava
em sua mão poderia ser usado para quebrar coisas, ou seja, como um tipo de
ferramenta, e também como arma, para ferir e abater outros animais. Era o
início do uso da tecnologia, um passo a mais no estágio evolutivo da espécie.
Vemos na cena o macaco pensando, usando o seu saber, testando o osso como
ferramenta. Cada pequena pancada era um teste. A verificação por meio de testes
seria uma forma rudimentar de fazer ciência, para finalmente chegar ao domínio
de uma nova tecnologia.
Na sequência
seguinte, em um conflito entre dois grupos de macacos, aquele cujos membros
estavam com ossos nas mãos usando-os como armas levou a melhor. Eles bateram em
seus adversários e dominaram o território. A sequência termina com um dos
vencedores jogando o osso/arma para o alto. Esse osso se transforma em uma nave
espacial, em uma das mais famosas e importantes elipses [12] da história do
cinema, simbolizando todo o desenvolvimento tecnológico dos primórdios até o
que havia de mais moderno naquela década. A história da humanidade em dois
planos. O comparativo entre o osso e a nave deixa clara a intencionalidade do
filme de ressaltar o osso como um artefato tecnológico.
Quinto e último episódio
Até aqui defendi
a sexta temporada, por entender que a crítica feita a ela, em grande medida, parte
de pressupostos equivocados quanto à proposta da série e quanto ao conceito de
tecnologia. Mas essa defesa não funciona tão bem para o quinto episódio, “Demônio 79”. Esse episódio parece
ser algum tipo de transição de Black Mirror para alguma outra coisa, alguma
outra série. Charlie Brooker chegou a comentar que pretendia dar início a um
outro projeto que se chamaria “Red Mirror” [13]. Inclusive o episódio começa
sendo anunciado como uma produção “Red Mirror”.
Por isso, este quinto e último
episódio me lembrou algum tipo de piloto para alguma nova produção que possa
estar por vir. Diferentemente dos quatro episódios anteriores da temporada,
aqui não dá para dizer que dispositivos tecnológicos dividem o protagonismo com
personagens da trama. As críticas feitas à temporada, se feitas somente ao
episódio, seriam cabíveis.
Ainda assim, se tentarmos interpretar
o episódio sob a luz do que já conhecemos de Black Mirror – e isso significa,
também, forçarmos um pouco a barra – podemos enxergar algo de interessante que
conecta “Demônio 79” ao restante da série. E convenhamos que interpretar um
episódio influenciado pela antologia a qual ele pertence não chega a ser nenhum
delírio ou absurdo.
É bem verdade que a tecnologia não
está em primeiro plano, mas o tal demônio, acidentalmente invocado por uma
imigrante vendedora de sapatos, toma a forma de um artista que ela havia visto
pela TV e achado atraente. Como ressalta o crítico PH Santos, para quem busca
uma interpretação mais literal, o espelho negro está aí [14]. É a televisão! A
propósito, é na tela da TV que o demônio confere seu novo visual, tal qual
alguém que se retoca em frente ao espelho.
Um demônio que se vale de um visual
atraente de um artista da TV para corromper uma pessoa normal que, apesar de
ser uma pessoa boa, tem os seus impulsos de fúria e devaneios de vingança e,
portanto, também é capaz de fazer o mal, pode ser uma metáfora a respeito de
muito do que a televisão e em maior extensão os mass media foram e ainda são capazes. Aliás, a mídia de massa –
jornais, TV, livros – aparecem com frequência sendo consumida pelos
personagens. E também os cartazes. Disseminando o perigo da Guerra Fria,
incentivando ou anunciando a xenofobia da qual a protagonista é vítima.
Você pode estar questionando: “mas é
claro que os veículos de massa vão aparecer. Estamos falando de uma história
passada em 1979!” De fato, aqui neste episódio precisamos fazer algum esforço
interpretativo à luz de toda a série. Mas, independentemente do protagonismo ou
não das tecnologias da informação e comunicação, o episódio até que funciona
bem como um episódio final de Black Mirror. Também porque há nele um político
em ascensão que representa um futuro alternativo de paranoia, capitalismo de
vigilância, sociedade de controle, punitivismo, preconceito e autoritarismo.
Tudo isso são questões já tratadas nos episódios de Black Mirror em suas seis
temporadas. Inclusive, no vislumbre que a protagonista tem desse futuro
alternativo, há referência aos cachorros-robôs de "Metalhead", episódio
da quarta temporada.
Um detalhe interessante: “Demônio 79”
se passa num 1º de maio do ano de 1979. Naquele mesmo ano e na vida real, dias
depois, Margaret Thatcher seria alçada ao cargo de primeira-ministra do Reino
Unido, onde se passa a trama. Junto com Ronald Reagan nos EUA, ela foi o
principal nome para a consolidação do que se convencionou chamar de
neoliberalismo [15], hoje praticamente onipresente em nossa sociedade global e
imperando fortemente no modo como as tecnologias são apropriadas. Seria esse alvorecer
neoliberal o verdadeiro apocalipse que gera Black Mirror? “Demônio 79”, além de
nos ajudar a entender como chegamos ao ponto em que chegamos, pareceu-me um
tipo de mito fundacional da série.
Referências:
MOCELLIM, Alan. Comunicação e Reencantamento: retórica ou
possibilidade?. Esferas, v. 6, p. 79-87, 2015
[1] 'Histórias bobas': Anitta está certa e 'Black Mirror'
realmente piorou:
https://www.uol.com.br/splash/noticias/2023/06/26/anitta-esta-errada-black-mirror-nao-e-apenas-sobre-tecnologia.htm
[2] Significado de tecnologia
https://www.significados.com.br/tecnologia-2/
[3] PIROU DE VEZ! BLACK MIRROR TEMPORADA 6: O QUE EU ACHEI:
https://www.youtube.com/watch?v=FqKcEoAEnF0&t=19s
[4] BLACK MIRROR TEMPORADA 6 - Análise completa de todos os
episódios!:
https://www.youtube.com/watch?v=or92MH5hTyA
[5] Chuck Norris contra o Comunismo:
https://www.youtube.com/watch?v=pKhVDYRA-OY
[6] Por que os yanomami não querem ter fotos suas
compartilhadas
https://www.dw.com/pt-br/por-que-os-yanomami-n%C3%A3o-querem-ter-fotos-suas-compartilhadas/a-64536528
[7] "Como Nossos Pais"? Comercial que reúne Maria
Rita e Elis Regina provoca debate sobre canção:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/musica/noticia/2023/07/como-nossos-pais-comercial-que-reune-maria-rita-e-elis-regina-provoca-debate-sobre-cancao-cljr2vbfb001o0150ax5jzbeg.html
[8] Bon Jovi apoia críticas a videogame com Kurt Cobain:
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2009/09/090917_bonjovinirvanaebc
[9] Por que tão sério: já notou que a galera nunca sorria em
fotos antigas?:
https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2023/06/18/por-que-pessoas-nunca-sorriam-em-fotos-antigas.htm
[10] Black Mirror’: todos os episódios, organizados do pior
para o melhor:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/11/cultura/1515697182_485240.html
[11] O pensamento e a descoberta da ferramenta “2001: Uma
Odisseia no Espaço”:
https://www.youtube.com/watch?v=9etefsYMm5o
[12] Elipse (narrativa)
https://pt.wikipedia.org/wiki/Elipse_(narrativa)
[13] Por Que Black Mirror Está Com CRISE DE IDENTIDADE?
https://www.youtube.com/watch?v=AtSzHGgM3Lk&t=19s
[14] Black Mirror 6x05 - Red Mirror | Demon 79 - Análise
https://www.youtube.com/watch?v=oeX8D7awdXg
[15] O que é neoliberalismo?
https://www.politize.com.br/neoliberalismo-o-que-e/